domingo, 17 de outubro de 2010

Sobre o morder a isca

É uma metáfora da Clarice Lispector, que eu conheci por esse texto, que, aliás, achei bem bonito (os grifos são meus):

MORDENDO A ISCA 

Para Clarice Lispector, "escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu."

O que seria, então, essa não-palavra, se estamos mergulhados num mundo verbal e repleto de
informações que nos atordoam a todo instante? Se tudo o que lemos e vemos já está devidamente fabricado, mastigado e até digerido, restando-nos apenas a contemplação passiva?

Essa não-palavra poderia ser aquela idéia, sensação ou opinião só nossa que ninguém jamais expressou, como: a vivência de uma paixão, o prazer de caminhar por uma praia deserta, o abrir da janela de manhã, a indignação diante dos horrores de uma guerra ou da corrupção desenfreada em nosso país ou mesmo nossos sonhos, desejos e utopias. Entrando em contato com essas emoções, podemos descobrir um lado oculto de nós mesmos ou até deixar aparecer um pouco de nosso caráter rebelde, herói, vítima, santo e louco. Estar aberto, com o olhar descondicionado para captar essa "não-palavra" é fundamental para que possamos escrever, não as famigeradas trinta linhas do vestibular mas um texto que revele nossa singularidade. Por isso, o ato de escrever requer coragem e, principalmente, uma mudança de atitude em relação ao mundo: precisamos nos tornar sujeitos do nosso discurso e pensar com nossa própria cabeça. 

E como isso pode ser difícil! Quantas vezes queremos emitir nosso ponto de vista sobre um assunto e percebemos que nossa formação religiosa, familiar e escolar nos impede, deixando que o preconceito e a culpa falem mais alto! Quantas vezes o nó está preso na garganta e não podemos desatá-lo por força das circunstâncias! Ou, pior ainda, quantas vezes nos mostramos indiferentes diante das maiores atrocidades! A rotina diária deixa nossa visão de mundo bastante opaca. No dizer de Otto Lara Resende, o hábito "suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Só a criança e o poeta têm os olhos atentos para o espetáculo do mundo." No entanto, a superação dessas barreiras pode ser bastante prazerosa, já que o prazer não é uma dádiva e sim uma conquista. Conquista essa que podemos obter por meio da escrita, caminho eficaz para esse desvendamento de nós mesmos e do mundo. 

Para escrever, portanto, não necessitamos de inspirações divinas ou de técnicas e receitas mas de um olhar curioso, esperto e liberto de preconceitos e de padrões preestabelecidos. Só assim morderemos a isca.
 
(MOURA, Chico. AGENDA DO PROFESSOR. São Paulo: Ática, 1994.)



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